Uma questão em que me ocorre refletir, com frequência, é a da relação
que temos com o tempo e o seu impacto socioeconómico.
E a questão surge de imediato. Em crianças, quantas vezes declararam
guerra ao despertador? Quantas vezes saíram sem pequeno-almoço? Quantas perderam
o autocarro? Quantas chegaram tarde às aulas ou todas no mesmo dia?
E em adultos? Quantas vezes passaram o limite de velocidade para
chegarem a tempo ao emprego? Quantas voltaram atrás, em busca de material não
colocado na pasta? Quantas entregaram aquele trabalho sem revisão? Quantas
inventaram aquela desculpa esfarrapada para não irem tomar café com o amigo,
não irem ao cinema com o vosso filho ou simplesmente não responderam àquele
mail?
Quantas vezes terão frustrado as expetativas dos vossos superiores,
colegas, familiares, amigos ou clientes?
Pois é! Tenho a certeza de que episódios como estes já aconteceram a todos
em maior ou menor número. E sabem porquê? Porque todos nós, em maior ou menor
grau, já percecionámos e aprendemos que estes comportamentos são cultural e
socialmente aceites, tolerados e desculpabilizados sem que nada de grave,
achamos nós, nos aconteça.
E mesmo quando acontece sofrermos as inevitáveis e imediatas consequências
desses comportamentos achamos que a responsabilidade nunca é nossa.
Lembro-me de um episódio em que uma repórter de televisão, perguntando
a uma senhora que se descabelava exasperada no fundo de uma extensa fila, na
qual penava havia quatro horas, “por que razão tinha ido às finanças pagar os
impostos só no último dia”, recebeu como resposta um assertivo “para não perder
tempo” num tom de voz de quem estranha tão absurda pergunta e condena a óbvia
ignorância da repórter. Obviamente, a senhora prosseguiu descarregando a sua
raiva e frustração sobre os funcionários da repartição e o sistema fiscal.
Aprendemos, assim, que apesar de sofrermos, de vez em quando, algumas
consequências negativas da nossa ação ainda podemos atribuir a responsabilidade
delas a outrem transferindo, conjuntamente, os nossos sentimentos negativos num
claro alívio dos mesmos.
Aprendemos que não vale a pena cumprir porque a tolerância pelo
incumprimento é já, em si, um prémio para os incumpridores que, afinal, poderão
estar a fazer outras coisas de que gostam ou simplesmente a não fazer nada, o
que parece ser uma forma de terapia largamente difundida entre nós.
Dentro deste paradigma, os cumpridores não têm nenhum prémio ou
vantagem. São totós, pouco espertos, risíveis, até.
Basicamente são os que chegam pontualmente ao espetáculo, evento ou
conferência onde não há absolutamente ninguém. O primeiro pensamento que lhes
ocorre é que se enganaram. Conferem o folheto. Não. Está lá e a hora é aquela.
O que lhes ocorre em seguida é que o espetáculo, evento ou conferência foi
desmarcado e que todos foram avisados à exceção deles. Mas esperam. Ao fim de
um quarto de hora, participantes precoces, diria, começam a chegar e outros vão
chegando a conta-gotas. Nesta altura, os pontuais já perderam o prazer quase todo
na espera.
Finalmente, ao fim de uma imensa meia hora ou mais, lá começa uma
coisa agitada, telúrica, ruidosa, animada (claro!) e anárquica de difícil
silenciamento na qual o primeiro conferencista deve sentir-se mais ou menos
inútil, ante a incapacidade de focalização do seu auditório.
Claro que há sempre uma desculpabilização um tanto perversa que
consiste em se considerar que os cumpridores o são porque não têm vida, nem
nada que fazer ou que são uns entes estranhos, de um tipo a fazer lembrar o
“rato de biblioteca”.
Permitam-me que vos desengane.
Todos nós, sem exceção,
gostamos de dormir, de brincar e de entretenimento e deixar o que dá prazer
também constitui um sacrifício para os cumpridores. Não. Não são especiais,
sobredotados ou semelhantes à Madre Teresa de Calcutá. Nada disso. A única
diferença é que estão motivados a cumprir por compreenderem a utilidade e a
ética do cumprimento e, ao senti-lo assim, passam a considerá-lo também um
prazer.
Reconheçamos que se trata de um problema e comecemos a tratá-lo já, mudando
num “act as…”, ensinando à nossa mente e às gerações mais novas a ética e a
utilidade da gestão do tempo e do respeito pelos compromissos e pela pessoa
humana.
Permitam-me ainda recordar que a irritabilidade e o stress causados pelo caos matinal, pela
falta de pontualidade ou pela fila irão afetar todo o vosso dia de trabalho, as
vossas emoções e as vossas relações comprometendo a eficiência, a eficácia, a
produtividade e os resultados senão mesmo a vossa saúde.
Por outro lado, por se tratar de um traço cultural e relativo, nunca
viríamos a conseguir qualquer coisa que se pudesse vagamente aproximar de uma
certa uniformização do atraso (o que de alguma forma nos ajudaria a fazer os
nossos descontos e a gerir o tempo) e que seria um paradoxo. De quanto é para
si um atraso tolerável?... Cinco, seis, dez minutos ou os quinze do famoso
quarto de hora académico? Pois é. Qualquer discussão à volta de um conceito de
atraso uniforme estaria votada ao fracasso e seria sempre discutível. Além de
cultural, o atraso reveste-se de uma natureza pessoal e subjetiva. É impulso. Já
pensou que só a pontualidade pode corresponder a um conceito racional,
científico e universalizável?
Definitivamente a expressão “Time is money” não poderia ter sido
criada por nós. Por cá é mais “Depressa e bem não há quem”. Já os japoneses
devem ter qualquer coisa como “Depressa, bem e à primeira”. Provérbios, ditados
e mesmo a semântica das línguas traduzem a própria cultura.
A gestão do tempo é hoje considerada uma das mais importantes soft
skills e deve ser entendida como parte da educação básica do cidadão.
No entanto, o seu treino tem sido, tradicionalmente, deixado a cargo dos pais
mas, cada vez mais, deverá ser integrado nos currículos escolares a fim de
passarmos do paradigma da desculpabilização ao paradigma da responsabilização.
1 comentário:
Viva Helena!
Grande texto sobre uma das grandes pragas do nosso tempo! Pelo menos, neste nosso retângulo!
Beijos!
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