A importância das anedotas para a nossa compreensão do mundo.


Anedotas, piadas, jokes, são histórias com enredo surpreendente, património da oralidade, habitualmente recontadas e que pretendem por o ouvinte a rir ou a pensar.
São excelentes quebra-gelos, nas exposições orais.
Para o meu primeiro discurso público sugeriram-me, como ice breaker “conta a história da balzaquiana”. De facto a balzaquiana, em certos ambientes, é uma história com piada. Tem um cariz masculino nítido e um final perfeitamente inesperado.
Uma bela mulher feita, nos seus trintas, das que Balzac descrevia tão sedutoramente, decide ir ao médico porque se convenceu que era mesmo doença o que tinha. A sintomatologia prendia-se com o facto das suas glândulas mamárias, libertas dos constrangimentos da roupa, tinham um movimento ascendente, em vez de respeitarem a lei da gravidade. Convencida pelas amigas que era doença, foi ao médico. Ouvidas as explicações o médico disse, “vamos lá a ver isso”. Ela fez o que teria que fazer, despiu a blusa, tirou o soutien e, como esperava cumpriu-se o que dizia: voltaram-se para cima. O médico cofiando a barba, e depois de fechar a boca, lá foi dizendo que era uma doença rara, que ele nunca tinha estudado, mas que era contagiosa, lá isso não havia dúvida.
Como se vê é uma piada com contorno masculino, que nos faria rir e que, não sendo enxovalhante, vai bem em audiências habituadas ao cinismo do duplo sentido.
Quanto às anedotas que nos põem a pensar, pergunta-se, têm uma estrutura diferenciada? Não. Têm o condão de nos desvendar o mundo.
A que me ocorre foi relembrada depois dos ditos “atentados” recentes de Boston.
Coloquem-se na posição do governante, do detentor do poder e suponham que são confrontados com a seguinte situação. Aquela célula terrorista foi descoberta antes dos atentados e capturado um dos seus líderes. Há evidência suficiente para os classificar como terroristas e para saber que foi colocada uma bomba suja, algures na metrópole, que deflagrando pode provocar milhares de vítimas.
“Tic Tac”. Tem que ser descoberta e desativada. Não sabemos onde. Que fazer?
Reunido o Gabinete de Crise houve um debate entre duros e liberais.
Extraímos as informações do prisioneiro, esse terrorista. Com recurso a todos os métodos. Até às últimas consequências.”
Tortura, idade média, terrorismo, mortos, pesadelos. De facto entre a dor a infligir a um prisioneiro e a possibilidade de com isso evitar a morte de milhares de pessoas, nem há escolha numérica possível.
Atenção, nós somos humanos e distinguimo-nos da barbárie por alguma coisa, uma delas é um sistema de valores que respeita a vida humana e a liberdade de escolha”.
Será que essas duas prerrogativas estão no sistema de valores do terrorista em causa?
Será que esse terrorista se preocupa com a vida humana quando coloca bombas?
E nós que temos que tomar decisões queremos ser como eles? Baixar-nos ao seu nível de racionalidade? Antecipemos as consequências. Suponhamos que a escolha é pela tortura. Sabendo-se e estando nós em situação de guerra, quando os nossos soldados forem tomados como prisioneiros, serão seguramente torturados, pelo menos como gesto de vingança. Esta decisão vira-se contra nós”.
OK. Mitiga-se isso de qualquer forma. Nós pagamos. Mas essas práticas de tortura serão secretas e praticadas por outros, sem ligação à nossa nacionalidade, em sítios neutros e sem conexão ao nosso país.”
 A barbárie será assacada a outros.
“Olhemos então para a eficácia da medida, neste caso concreto. Se o que pretendemos é obter uma confissão, se o torturamos, qual a segurança que temos que ele nos diz o local da bomba e como desativá-la? Pode mentir-nos. Pode querer ganhar tempo. Ao tomar uma decisão de tortura deveríamos ser radicais: pegamos na filha dele, com 10 anos - não tem nada a ver com isto - mas infligimos-lhe dor a ela, na presença dele e garantimos a eficácia”.
Aqui a consciência do liberal funciona. Pegar num inocente e fazer dele, deliberadamente, uma vítima!? Isso é de muito difícil aceitação moral. Há limites. A decência. A consciência. A conformidade com os padrões ética e politicamente aceites.
Aqui a consciência do liberal pode dar um outro salto epistemológico: quem somos nós e o que estamos aqui a fazer? De facto estamos a tentar salvar vidas de pessoas inocentes. Mas como, porque meios? Tornamo-nos os acusadores, os julgadores e os executores deste terrorista, mas o objetivo é nobre: salvar vidas, pelo que podemos usar qualquer método? De facto o que nos move é a palavra terrorismo, que temos que banir e estripar: acabando com todos os terroristas. Como? Usando todos os métodos repressivos, inclusive a tortura?
Et voilá, temos uma resposta: “podemos ser inteligentes, mais inteligentes que eles e temos a tecnologia a nosso favor, vamos ver por onde ele andou, com quem contactou, o que disse, o que ouviu, e de seguro que com a mínima colaboração dele, conseguimos saber tanto quanto ele sabe”.
Daí que há satélites, camaras de vídeo vigilância, escutas, intersecção de comunicações eletrónicas, pesquisas a partir de traços biológicos, reconstrução e indexação de imagens, enfim, o big brother. Não temos tortura, mas temos a devassa da vida privada.
Como veem uma simples história que nos põe a pensar. Lembrem-se da Sofia de Melo Breyner: vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.

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