“Prescrição médica: uma noite por semana à luz da vela”
"O psiquiatra Pedro Afonso lança esta terça-feira o livro Quando a mente adoece. Nele, olha com preocupação para “o endeusamento do trabalho” e defende que as escolas deveriam ter nos seus programas horas dedicadas ao voluntariado. Para ensinar a empatia desde cedo."Público, Catarina Gomes, 22.09.2015
"Tudo começou num dia em que a electricidade faltou. Nessa noite não houve Internet, televisão, Playstation. Pais e filhos passaram o serão em redor de uma vela. Conversaram, contaram histórias e o tempo passou. A partir desse dia, a família passou a ter uma vez por semana uma noite sem luz. O psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Pedro Afonso ouviu contar esta experiência a um conhecido e, no seu livro Quando a mente adoece, transforma "uma noite por semana à luz da vela” em "prescrição médica".
Prescrever a abstinência tecnológica durante uma noite por semana pode ser visto como “uma provocação”, ou um conselho literal, mas o que Pedro Afonso pretende é que seja sobretudo uma chamada de atenção contra o que chama hora do “(des)encontro” familiar, com os “jantares de tabuleiro” ou “jantares self service”, em que os vários membros das famílias terminam os seus dias “sequestrados pelos vários ecrãs”.
No capítulo onde inclui dicas para “melhorar a saúde mental”, convida “a uma espécie de autodisciplina”, em que, em família, se deve fazer por criar regularmente um ambiente de diálogo que potencie a partilha dos “pequenos acontecimentos do dia, os momentos maus, bons, as dúvidas, os desejos e as frustrações que aconteceram num espaço de um dia". "Assim se constrói intimidade”, diz.
Em sua casa, com os seus filhos, há um cestinho onde todos os telemóveis são colocados a seguir ao jantar, porque se constata que, até de luz apagada, os mais novos ficavam a trocar mensagens até altas horas da noite. "O cérebro precisa de descansar. Há uma altura a partir da qual é preciso desligar”, avisa.
O livro Quando a Mente Adoece- uma introdução à psiquiatria e à saúde mental (editado pela Principia) pretende explicar, com linguagem simples, quais os vários tipos de perturbações mentais que existem. O último capítulo é dedicado a mapear as muitas mudanças que as novas tecnologias trouxeram à vida social e como estas representam, muitas vezes, ameaças à saúde mental.
“Temos de nos encontrar um dia destes”. É uma frase costumeira que se ouve cada vez mais, nota o psiquiatra, normalmente no final de um telefonema, mas o encontro vai sendo uma promessa adiada. “Aceitamos amizades por telemóvel. Raramente nos visitamos e tendemos a aceitar isso com condescendência (...) Nada substitui a presença (...) O telemóvel é pobre. Esquecemo-nos das chamadas que fizemos durante a semana, lembramo-nos dos encontros, que envolvem a comunicação não verbal, que fica mais tempo na memória e tem mais impacto”.
“Há pessoas que comunicam quase exclusivamente por via electrónica, o presencial vai desaparecendo, para se tornar residual”, repara ainda Pedro Afonso acrescentando que "telefonar ou mandar um sms quando algum amigo está a passar por um momento difícil" alivia a consciência. "Racionalizamos assim as nossas ausências com a falta de tempo”. Ora, defende o psiquiatra, este tipo de amizades apenas à distância têm “pouca vitalidade e por vezes parecem estar em estado comatoso, uma vez que só se mantêm vivas por estar ligadas à máquina: ou seja, permanecem ligadas ao computador ou ao telemóvel.”
Pedro Afonso aborda também a questão das redes sociais e a necessidade do seu uso “com equilíbrio e parcimónia”. Chama-lhe um mundo onde se pratica “uma comunicação pouco espessa”. Como psiquiatra conhece os dois lados da moeda, do mundo rosa do que se posta na Internet, e dos problemas e fracassos que ficam de fora. “O Facebook é uma fábrica de ilusões. Como psiquiatra tenho oportunidade de conhecer dois lados que não se conjugam. Há pessoas com depressões e problemas sociais graves escondidos numa vida de aparência”, nota. “Há uma busca da autovalorização e uma necessidade exibicionista de atenção e admiração”, escreve.
A advogada que saía cedoOutra das ameaças à saúde mental vem do que chama “o endeusamento do trabalho” e, no livro, conta a história de uma competente jovem advogada que começou a sair do escritório às 19h, para estar com o filho mais pequeno, que ia para cama às 21h30. Foi chamada à chefia por se ter criado desconforto por andar a sair “tão cedo”. A advogada tinha quebrado a regra de estar no escritório 12 horas por dia. Ela respondeu que tinha a mesma produtividade que os colegas, mas que queria estar com o filho e vê-lo crescer. O chefe respondeu: “tem razão, mas para acabar com os falatórios envie de vez em quando um email para o escritório por volta das 22h-23h, assim pelo menos dá a ideia de que continua a trabalhar a partir de casa.”
Pedro Afonso diz que é recorrente ouvir a ideia de que não interessa a quantidade mas a qualidade do tempo que se passa com os filhos mas alerta que isso não é verdade. “Torna-se impossível estabelecer uma relação equilibrada entre o trabalho e a família quando se trabalha 10 a 12 horas”. Depois, preconiza, é preciso combater a ideia de que “presença prolongada no local de trabalho é igual a produtividade e compromisso laboral”, uma vez que “a produtividade cai com o cansaço, pois a nossa capacidade de concentração é limitada”.
E que é preciso que os empregadores percebam que esta sobrevalorização do trabalho, que é transversal aos vários níveis nas empresas, ainda mais quando paira “o fantasma do desemprego”, “tem um impacto enorme na vida das pessoas, conduzindo a alterações depressivas”. “A nossa energia e tempo é limitado, se alocamos tudo ao trabalho não resta mais nada. Nós temos de ter lazer, tempo de não fazer nada”. “Um dos erros é considerar normal trabalhar durante 10 a 12 horas”. “Se o trabalho impede a conciliação com a vida familiar, não devemos mudar de família mas de emprego.”
O livro vai ser lançado esta terça-feira, em conjunto com um debate em torno do tema O excesso de informação e o cérebro humano, que se realiza na AESE Business School, em Lisboa, onde Pedro Afonso dá aulas de Desenvolvimento Pessoal.
Do psiquiatra para o sacerdotePara os mais novos, o médico defende no seu livro que o voluntariado – ressalvando que não deve ser confundido com "um acto isolado, com contornos folclóricos ou um gesto de caridade" – devia ser ensinado nas escolas através de acções concretas. Na opinião do psiquiatra, “seria importante incluir nos programas escolares um número de horas dedicadas ao trabalho de voluntariado em instituições de solidariedade social”.
Esta seria uma forma de “criar empatia e ensinar as crianças a colocarem-se no lugar do outro”. Pedro Afonso diz que quando se ouve na boca dos políticos expressões como “os mais pobres, os mais desfavorecidos, parecem palavras desligadas do real, proferidas mecânicamente”. ”Só conseguimos ajudar se criarmos empatia. Isso aprende-se. Faz parte da formação humana”. E deve começar cedo.
“O que noto é que as pessoas com maior robustez psíquica sãs as que fazem voluntariado e que sempre o fizeram. Dá saúde mental fazer voluntariado”. Assim como se passam horas no ginásio, diz, deve haver um “ginásio de solidariedade desde novos e depois manter esses hábitos”.
O psiquiatra termina o livro abordando as limitações da psiquiatria. Fala de pessoas que vão bater à porta do psiquiatra mas às quais os médicos devem, com humildade, dizer que não podem ajudar. Chegam-lhe com “crises existenciais, às quais não cabe à psiquiatria, nem tão pouco a psicanálise, dar resposta”, pessoas que “vão avançando na sua vida e que não têm sentido para a vida". Há na vida “sofrimento saudável” que não deve ser atenuado com antidepressivos, afirma.
Se nota que já há sacerdotes mais sensibilizados para as questões da saúde mental e que do confessionário encaminham para o psiquiatra, também há questões “existenciais” que pertencem mais ao mundo da religião e da filosofia do que à medicina, porque é muitas vezes “de ajuda espiritual e não psíquica que as pessoas andam à procura”. “Muitos pedidos de ajuda que são dirigidos actualmente ao psiquiatra seriam melhor direccionados a um sacerdote.”"
Original em: [PÚBLICO]: